O silêncio da filosofia brasileira sobre Gaza

Khaled Hourani, Paisagem não natural, 2020
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Por RAFAEL LOPES BATISTA*

O quanto a filosofia e o pensamento crítico brasileiros estão alinhados com a defesa prática e efetiva dos direitos humanos fundamentais

Como a filosofia acadêmica brasileira tem se comportado em relação aos eventos ocorridos na Faixa de Gaza nos últimos seis meses? Como se posicionam os pesquisadores, professores e estudantes (se é que se tem algum posicionamento)? Por que a pouquíssima repercussão em relação ao tema? Com indagações como estas em mente, este texto é sobre filosofia, mas é também um manifesto contra a inércia e a omissão.

Desde que o ataque terrorista do grupo Hamas foi perpetrado no território israelense, tem-se observado que, com raras exceções[i], pouco a comunidade filosófica brasileira tem se engajado no debate histórico-teórico, e menos ainda tem se engajado na militância. Não, não dissocio debate histórico-teórico e militância, principalmente se o que está em jogo é toda uma etnia e cultura. Ou seja, não dissocio aqui a teoria da prática. Como defensor do pressuposto de que nossas posições, princípios e ações devem estar ancorados no rigor da análise filosófica (e isso deveria valer sobretudo para quem faz parte desta comunidade), entendo que nossos compromissos práticos — leia-se, éticos e políticos – não possam ser meras ações irrefletidas ou sem embasamento. Este esclarecimento é importante para que seja demarcada aqui, de início, uma determinada concepção de filosofia, que enxerga neste saber a necessidade de interrogar, compreender e intervir nos problemas da realidade concreta. Nesse sentido, interrogar, compreender e intervir são compreendidos como valores imperiosos que devem perpassar a prática filosófica, compreendida aqui como atividade que não se restringe à contemplação e interpretação.

Circulou e ainda circula no ideário do senso comum, a ideia de que os filósofos viveriam numa espécie de torre de marfim, como se olhassem para o mundo terreno do alto de um posto em que se colocam indiferentes ao que ocorre no nível do cotidiano mundano das pessoas. Dada a variedade de exemplos que poderiam ser dados de pensadores que intervieram nas grandes questões de suas respectivas épocas, não há por que concordar com tal visão. Porém, devemos reconhecer: a filosofia tem sim se encastelado no que diz respeito ao massacre israelense contra os palestinos.

E trata-se exatamente disso, uma guerra de destruição em massa do Estado de Israel contra o povo palestino, sua cultura e memória. Tal constatação já está mais que evidente e comprovada há vários meses, basta acompanharmos os relatos que nos chegam diariamente e que chocam qualquer pessoa minimamente sensível à dor e ao sofrimento humano. Até na mídia tradicional brasileira, que notadamente é pró-Israel, surgem notícias de atrocidades das mais perversas cometidas pelas forças israelenses, que, é claro, apenas agem sob a representação e a legitimação dadas pelo Estado israelense.

Ora, nessas horas onde estão nossos Grupos de Trabalho da ANPOF, por exemplo? Citando apenas aqueles que possivelmente têm maior proximidade teórica com os fatos em Gaza — de modo que talvez sejam não somente os mais aptos a contribuir teoricamente para o problema, mas também os primeiros que deveriam se posicionar: temos GTs de Direitos Humanos, Filosofia Política, Filosofia e Gênero, Filosofia Oriental, Teoria Crítica, entre outros. Onde está todo esse pessoal? Tratando diariamente de tais temas não ficam incomodados com a violência brutal a que está submetida a população palestina? Conseguem continuar ministrando aulas, reunindo-se para discutir textos, escrevendo artigos, orientações etc. sem no mínimo tornar pública sua posição? Conseguem ficar indiferentes à dor humana e aos crimes de guerra? É assim que se faz filosofia, fingindo não ver uma crise humanitária tão perversa?

Dados da ONU e de outras entidades têm nos confirmado que a imensa maioria dos mortos palestinos são civis, e, mais aterrorizante ainda, muitos são civis mulheres e crianças. Quantas famílias destroçadas e quantas vidas arruinadas! Como será o futuro social, econômico, físico e psíquico dessas milhares de crianças que tiveram seus pais, avós e irmãos assassinados? Qual o futuro a elas estamos ajudando a legitimar? Está em curso, passando pelos nossos olhos, a completa barbárie! Barbárie contra todo um povo, contra sua etnia, seu pensamento, sua memória, sua arte e sua cultura. De novo: onde estão os companheiros e companheiras que estudam a Teoria Crítica frankfurtiana[ii], por exemplo? Theodor Adorno e seus colegas que tanto falaram de barbárie, educação contra a barbárie, a necessidade de se evitar a repetição de Auschwitz… Vamos nos calar agora, deixar as coisas acontecerem, para depois, quase que cinicamente, fazer dessa catástrofe o tema de artigo, dissertações e teses para inchar nosso currículo lattes?

Recentemente, a antropóloga e professora da Universidade de São Paulo (USP) Francirosy Campos Barbosa publicou um texto no qual apontava o silêncio da comunidade universitária, porém, ela deu maior ênfase para a omissão da intelectualidade feminista[iii]. De fato, como observa Francirosy, parece que nossas feministas acadêmicas, de modo geral, se importam mais com as mulheres que estejam dentro dos padrões ocidentais. Com as feministas filósofas não parece ser diferente. Se calam frente aos crimes e abusos praticados pelo Estado de Israel com meninas e mulheres palestinas, tais como assassinatos, estupros e torturas – os quais inclusive são abertamente reconhecidos pela ONU[iv]. E os grupos dentro da filosofia que estudam os autores e as perspectivas decoloniais, pós-coloniais e anticoloniais? Estes então… sua omissão tem sido ainda mais evidente, e não é de agora. É amplamente reconhecido por especialistas que Israel pratica há décadas um regime de colonialismo contra os palestinos, inclusive até os aliados e a grande mídia favorável a Israel se referem constantemente às pessoas que tomaram terras palestinas na Cisjordânia como sendo “colonos”. Sim, é isso mesmo, COLONOS! Para além do imperialismo ou colonialismo epistêmico que alguns integrantes da ANPOF tanto têm combatido, onde está a luta deles e delas,D filósofos(as) das universidades, contra o imperialismo e colonialismo à moda antiga? Este é o colonialismo e o imperialismo que mata, elimina os corpos de crianças, idosos, homens e mulheres — independentemente de suas preferências ou orientações sexuais.

A Faixa de Gaza está sob escombros, escombros estes feitos de bibliotecas, museus, hospitais, universidades, teatros, escolas, mercados… enfim, a história, a filosofia, a ciência, a cultura e, sobretudo, a humanidade palestina, foram e estão sendo humilhados, vilipendiados e destruídos. Não podemos nos dar ao luxo de não nos posicionarmos, de não direcionar a filosofia para os problemas concretos do mundo.  

Descompromisso

Surgiu em fevereiro de 2024 um sinal de esperança a esse imobilismo quando se sucedeu a criação da Rede Universitária de Solidariedade ao Povo Palestino. Trata-se do ajuntamento de professores e professoras de universidades brasileiras que se opõem à passividade da intelectualidade, entendendo que a “comunidade acadêmica brasileira é desafiada a se posicionar publicamente em defesa da justiça e do rigor histórico”[v]. Será que houve professores(as) e intelectuais filósofos(as) que se inscreveram na Rede? Se sim, quantos? Aliás, quantos ao menos têm conhecimento da existência da organização e se interessam pela causa palestina de maneira geral? Perguntas como estas, pretendem, em última instância, identificar e mensurar o quanto a filosofia e o pensamento crítico brasileiros estão alinhados com a defesa prática e efetiva dos direitos humanos fundamentais.

Buscando informações com as pessoas que operam a Rede, confirmaram-me, via e-mail, que por trás da idealização do projeto não houve nenhum filósofo ou filósofa. Mais alarmante que isso: até 27 de abril de 2024, data do diálogo por e-mail, somente cerca de 1.540 pessoas tinham assinado o manifesto de criação da Rede, o qual, inclusive, foi razoavelmente bem divulgado nas mídias progressistas. É um número risível, tendo em vista o universo de mais de 315.000 mil docentes[vi] atuando no ensino superior brasileiro. Mas voltando ao caso específico da filosofia, é significativo e preocupante que acadêmicos de outras áreas tenham se preocupado de maneira concreta com questões humanitárias enquanto filósofos/filósofas, não. O que explicaria este fato? O porquê dessa omissão da filosofia?

Buscando os motivos da omissão

Tentarei aqui expor as três razões que parecem ser as mais prováveis, e no final das contas, provavelmente um pouco de cada uma ajudará a explicar o fenômeno. Primeiramente, talvez haja o medo dos profissionais de sofrer algum tipo de ameaça, punição ou perseguição, até mesmo no sentido de perderem o emprego, haja vista ser quase um tabu colocar-se contrariamente às ações de Israel. Em alguns casos, pessoas com essa postura têm sido rotuladas, cínica e covardemente, de antissemitas ou pró-Hamas. Mas contra esse possível argumento aqui entraria a tal autonomia universitária e os demais princípios constitucionais que garantem a liberdade de pensamento e de expressão.

O segundo provável motivo é simples: professores e pesquisadores da área da filosofia decerto pouco se importam com a destruição da Palestina e de seu povo, o que leva a crer que também não se importam muito com – ou acreditam ser um problema menor – as crises e transformações que estão ocorrendo na dinâmica do poder global, de modo que a destruição em massa aparece para eles apenas como mais um fato cotidiano que demanda, no máximo, manter-se informado no dia a dia do noticiário. Aqui entraria uma espécie de falta de interesse com as determinações históricas do que é o nosso mundo atual, e, ao mesmo tempo, haveria também um déficit de sensibilidade em relação ao que está distante e ao que é diferente de nós.

A terceira explicação possível está diretamente ligada à segunda: as pessoas e instituições muitas vezes cultivam e praticam, ainda que não plenamente conscientes disso, um tipo de filosofia que é assentada sob um recolhimento e desdém do mundo real e de seus problemas concretos, principalmente se estes problemas estiverem num outro plano geográfico, constituído por pessoas não ocidentalizadas. Nesse último caso, sempre é nobre e valoroso o estudo e o debate de conceitos, como por exemplo liberdade, democracia, barbárie, justiça, emancipação, razão comunicativa, razão instrumental, empoderamento, igualdade, descolonização etc. Todavia, estes conceitos só são reconhecidos e valorizados se ficarem restritos aos muros da universidade ou então se forem mobilizados para pensar o apenas o ocidente, não podendo aparecer na cena filosófica para denunciar ou compreender o que acontece aos palestinos.

Repito: há sim louváveis exceções. A grande questão é que estas manifestações foram apenas esporádicas, casuais, ínfimas frente à dimensão da catástrofe humanitária, étnica e cultural. Não foram posicionamentos estruturais, insistentes, organicamente ligados a ações políticas e da sociedade civil. Neste ponto, volto àquele tópico mencionado no início deste texto, sobre filosofia e militância. Na medida em que a atividade filosófica é inexoravelmente mediada e ligada às inúmeras determinações de seu tempo histórico, me parece ser contraproducente, e talvez até um pouco medíocre, fazer filosofia sem ela estar interessada em resolver ou minimizar os problemas reais e imediatos de nosso tempo. Nesse sentido, o trabalho do filósofo deve articular-se com a sociedade, com o mundo real e suas instituições, com os movimentos sociais, com a prática política. O espaço da Rede Universitária de Solidariedade ao Povo Palestino cumpriria com sucesso esse papel de atuação ética, social, política, militante. É uma pena e um desperdício histórico tão poucos colegas se unirem nessa empreitada, pois seria mais uma chance de mostrarmos que não são “filósofos de gabinete”. Mas o mais importante é percebermos que não se faz filosofia sem se apropriar e sem participar ativamente dos dramas, desafios e necessidades de seu tempo histórico.

O pensamento filosófico, por causa de sua própria natureza, não pode ser conformista e inofensivo, ao contrário, ele deve atacar os temas e problemas em suas raízes, em seus fundamentos mais basilares, e isso, é claro, tanto no campo teórico quanto no campo da prática e das ações cotidianas. Que engenheiros, físicos, agrônomos, químicos, matemáticos não se pronunciem sobre questões humanitárias, ainda que igualmente problemático, é mais ou menos compreensível; pois seus campos de atuação, no âmbito acadêmico, têm um certo distanciamento epistêmico e ético-político da questão palestina e do terror que lá está em curso. Mas para nós, que vivenciamos as Ciências Humanas e Sociais, esse silêncio deveria ser inaceitável, sobretudo para a filosofia, que sempre prezou – ao menos em nível teórico e abstrato –pelos valores humanistas.

Um cessar-fogo em Gaza é mais que urgente e necessário, e é um dever nosso defendê-lo publicamente, seja em palestras, cursos, aulas, em projetos ou até mesmo nas redes sociais. Este é o momento de colocarmos em prática a ideia kantiana, tão famosa e aclamada, de se fazer aquele “uso público da razão” (1985), presente no texto “Resposta à pergunta: Que é Esclarecimento”. A filosofia não pode se esconder num momento como este, e, permanecendo assim, nesse estado de letargia, corre o risco de futuramente ter de assumir seu próprio fracasso.

*Rafael Lopes Batista é professor de filosofia na rede estadual de educação de Goiás.

Notas


[i] O nome mais conhecido da filosofia que vem abordando o tema de Gaza-Israel é o de Vladimir Safatle, inclusive com material publicado no YouTube que conta com milhares de visualizações. De resto, até a escrita deste texto, foram encontrados apenas três ou quatro artigos de opinião na coluna oficial da ANPOF (Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia), e uma breve nota oficial desta Instituição. Porém, não deixa de ser inquietante o fato de a ANPOF só ter trazido tal nota a público mais de três meses depois da invasão do exército israelense em Gaza, ou seja, muito depois da barbárie israelense já estar amplamente demonstrada. O documento pode ser lido aqui: https://anpof.org.br/comunicacoes/notas-e-comunicados/nota-da-anpof-sobre-a-situacao-do-povo-palestino.

[ii] Situação lamentável para a Teoria Crítica, enquanto importante tradição filosófica, são as hipócritas palavras assinadas por Habermas e seus colegas, defendendo as medidas de Israel contra Gaza. É emblemático o fato de o texto publicado por eles trazer posicionamentos que foram noticiados em tom de comemoração em canais da mídia de extrema direita do Brasil.

[iii] Texto disponível em: https://jornal.usp.br/artigos/a-morte-de-mulheres-palestinas-e-o-silencio-das-feministas-e-da-academia/. Acesso em: 01 mai. 2024.

[iv] Notícia disponível aqui: . Acesso em: 01 mai. 2024.

[v] Trecho do texto de apresentação do projeto, disponível no endereço: https://universidadespelapalestina.com/.

[vi] Dado disponível aqui: acesso em: 02 mai. 2024.


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